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Gerivaldo Neiva *
“Nenhum
homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do
continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado
pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório,
ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de
qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro
envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles
dobram por ti.” John Donne
Dois
momentos de tristeza e um de esperança tomaram conta de mim há alguns
dias. Não muitos, aliás. Vou começar falando dos momentos tristes e
deixar a esperança para o final.
Primeiro
momento: houve uma manifestação em frente ao fórum da comarca e saí
para observar e saber o que queriam os manifestantes. Seguinte: havia
acontecido um crime há alguns dias e pessoas amigas da vítima estavam se
manifestando silenciosamente no portão do fórum, portanto faixas e
cartazes, clamando por “justiça”. Aproximei de uma jovem adolescente, 14
ou 15 anos, e indaguei o que significava para ela, naquele caso, a
“justiça”. A resposta: “Que esse monstro (o acusado) apodreça na cadeia”.
Segundo
momento: minha filha, 13 anos, estudante em escola de classe média,
chegou em casa entusiasmada para me contar que houve uma discussão na
sala de aula sobre a pena de morte. Ávido, perguntei como tinha sido o
debate. A resposta: muitos colegas defenderam a pena de morte como
solução para a criminalidade no país, mas outros colegas defenderam
penas alternativas: prisão perpétua, trabalhos forçados e que os ladrões
deveriam ter a mão decepada para que não roubassem mais.
Agora, vamos à esperança.
A
professora, minha filha e outros colegas argumentaram contra a pena de
morte e defenderam que presos deveriam estudar na prisão para
trabalharem quando saíssem de lá. Claro que fiquei orgulhoso de minha
menina, mas não posso esquecer os dois momentos que antecederam esta
alegria, ou seja, uma adolescente defendendo que um acusado, agora um
“monstro”, apodrecesse na cadeia e estudantes de 13 e 14 anos defendendo
pena de morte, prisão perpétua, trabalhos forçados e mutilação.
Não
satisfeito com minha alegria de pai, passei a buscar razões que
explicassem aquela forma de pensar dos adolescentes. Sem método algum e
baseado quase sempre no senso comum, refleti inicialmente que eram
ainda adolescentes e sujeitos a toda sorte de influências ideológicas:
família, religião, escola, televisão, propaganda em geral, Internet
etc. Isto é fato. De outro lado, também era fato que para uma
adolescente o sentido da prisão era de que o criminoso “apodrecesse”
nela, mas para outros adolescentes a prisão poderia ser o lugar do
aprendizado e da formação profissional. Assim, como também é fato que
esses adolescentes não nasceram com uma concepção formada acerca desses
e de outros temas, certamente estavam apenas reproduzindo ideias e
conceitos que adquiriram em seu processo de formação. Cada um era,
portanto, o resultado de uma história de vida. Cada um é sua própria
história.
Custo
a acreditar, de outro lado, que também é apenas resultado de uma
história de vida as concepções perversas e desumanas dos adolescentes
que defenderam, nesta quadra da história, o retorno de penas cruéis para
o nosso mundo ocidental e dito civilizado. Não tenho alternativa,
porém, para não admitir que também esses adolescentes não nasceram com
essas concepções e que estavam apenas reproduzindo um discurso.
Infelizmente.
Pois
bem, como gosto muito de conversar com estudantes, fiquei pensando o
que diria àquela menina da porta do fórum e aos colegas de minha filha
sobre suas respostas e concepções sobre o crime, o criminoso e sobre o
sentido da pena. Pensei, inicialmente, que poderia fazer um breve
histórico das teorias dos crimes e das penas; que poderia fazer uma
análise mais sociológica sobre as causas da criminalidade; que poderia
usar uma pedagogia mais radical e levá-los para conhecer a realidade das
prisões e a história dos que estão presos etc etc.
Não
sei se com isso mudariam de opinião. Penso, na verdade, que iriam
entender as teorias criminológicas e a lógica perversa de um sistema
excludente e concentrador da riqueza, mas ainda vai lhes faltar o
essencial: superar esta enorme dificuldade, por conta da carga
ideológica consumista e individualista que recebem diariamente, de se
encontrar no outro. Podem
chamar isso também de alteridade, humanismo, solidariedade ou outro
sentimento qualquer. O que tenho certo, penso eu, é que jamais seremos
plenamente felizes, nem eu e nem eles e nem a humanidade, se não
entendermos que os sinos dobram para cada um de nós e que a existência
só faz sentido se conseguirmos encontrar um pouco de nós em todos os
pobres e excluídos do mundo. Só assim, portanto, quando tivermos a
condição de tremer de indignação cada vez que uma injustiça for cometida
em qualquer parte do mundo, como queria Che Guevara, seremos homens e
mulheres de verdade.
Não
posso deixar de registrar, por fim, que apesar da tristeza inicial,
vejo ainda o mundo com esperança. Como prova disso, senti um profundo
orgulho de minha menina debatendo contra a pena de morte e, enquanto
escondia uma lágrima teimosa, dei-lhe um abraço carinhoso e cheio de
esperança de que ela ainda vai viver em um mundo melhor.
* Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 31 de agosto de 2011.
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